O Vampiro Lestat

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Lestat não é apenas um vampiro que impiedosamente crava aspresas no pescoço de qualquer mortal. Ele é um vampiro sofisticado, quesoube cultivar o savoir-vivre ao longo dos tempos. Nesse livro, segundo volumedas crônicas vampirescas, Lestat narra suas incríveis experiências na buscaincessante do êxtase e do significado de sua sombria imortalidade.O vampiro Lestat é o segundo livro das crônicas vampirescas de AnneRice. No primeiro volume, o best-seller Entrevista com o vampiro, Lestat éretratado como vilão pelo conturbado vampiro Louis. Neste romance,narrado em primeira pessoa, Lestat dá a sua versão dos fatos relatados nacélebre entrevista, e conta sua fascinante história, desde que era um simplesmortal no interior da França pré-revolucionária.Para escapar da rotina da vida no campo, o jovem Lestat deLioncourt, seduzido pela fulgurante Paris do século XVIII, abandona suafamília e segue com uma trupe de atores para trabalhar no teatro. Em Paris,seu talento chama a atenção de Magnus, um vampiro secular que está decididoa dar fim à própria existência, e para isso transforma Lestat em vampiro,legando a ele sua fortuna e a missão de encontrar as origens de sua espécie.Em sua busca, Lestat desvela a fantástica mitologia vampiresca queremonta ao Antigo Egito e, aos poucos, toma conhecimento de quem é quemna galeria de imortais que habitam os subterrâneos do mundo. Suas aventurasatravés dos tempos desembocam no século XX, quando o vampiro se tornaum ídolo do rock, com uma verdadeira legião de fãs e clipes na MTV. Além dese integrar ao mundo dos vivos, com sua música Lestat pretende acordarvampiros ancestrais para tentar esclarecer os enigmas de sua misteriosa formade existência.Com essa extravagância, no entanto, Lestat acaba quebrando ocódigo de silêncio dos vampiros e provocando a ira de criaturas ainda maispoderosas do que ele. Assim, perseguido pelos imortais e pelos mortais quepercebem sua natureza, Lestat percorre o mundo, experimentando os pesares,mas também todos os prazeres que a condição de vampiro pode lheproporcionar.

Anne RiceO VAMPIRO LESTATSegundo volume das crônicas vampirescasTradução de REINALDO GUARANYEste livro é dedicado com amor a Stan Rice,Karen O'Brien eAllen Daviau

Centro da cidade, sábado à noite, no século XX1984Sou o vampiro Lestat. Sou imortal. Mais ou menos. A luz do sol, o calorconstante de um fogo intenso — essas coisas poderiam destruir-me. Mas, poroutro lado, talvez não.Tenho um metro e oitenta de altura, o que causava forte impressão nosidos de 1780 quando eu era um jovem mortal. Agora, não é nada de mais. Tenhocabelos louros e cheios que quase chegam aos ombros, mais para ondulados, queparecem brancos sob luz fluorescente. Meus olhos são de cor cinza, mas absorvemfacilmente as cores azul ou violeta das superfícies a seu redor. E tenho um narizbem pequeno e estreito, uma boca bem desenhada, só que um pouco grandedemais para meu rosto. Pode parecer muito cruel ou extremamente generosa aminha boca. Mas sempre parece sensual. Emoções e propósitos estão semprerefletidos em toda minha expressão. Tenho um rosto que está sempre animado.Minha natureza de vampiro revela-se na pele muito branca e reflexiva aoextremo, que precisa de pó-de-arroz para câmeras de qualquer tipo.E se estou com grande necessidade de sangue, pareço um perfeito horror— pele murcha, veias que parecem cordas sobre os contornos de meus ossos. Masnão deixo isso acontecer agora. E a única indicação consistente de que não souhumano são minhas unhas. É a mesma coisa com todos os vampiros. Nossasunhas parecem vidro. E algumas pessoas notam isso quando não notam algumaoutra coisa.Neste exato momento sou o que a América chama de superestrela dorock. Meu primeiro álbum vendeu quatro milhões de cópias. Estou indo para SanFrancisco para a primeira apresentação de uma turnê de concertos por todo o país,que levará minha banda de costa a costa. A MTV, o canal de televisão a cabo que

transmite música de rock, vem exibindo meus videoclipes noite e dia há duassemanas. Também estão sendo exibidos na Inglaterra, no programa Top of the Pops,na Europa Continental e provavelmente em certas regiões da Ásia e do Japão. Fitasde vídeo de toda a série de clipes estão sendo vendidas no mundo inteiro.Também sou o autor de uma autobiografia que foi publicada na semanapassada.No que diz respeito ao meu inglês — a língua que uso em minhaautobiografia —, comecei a aprendê-lo com os tripulantes da barca que descia oMississipi até Nova Orleans, há cerca de duzentos anos. Depois disso, aprendimais com os escritores de língua inglesa — li quase todos, de Shakespeare, MarkTwain, a H. Rider Haggard, enquanto as décadas passavam. Recebi a infusão finaldas histórias de detetive da revista Black Mask, do começo do século XX. Asaventuras de Sam Spade, de Dashiell Hammett, na Black Mask, foram as últimashistórias que li antes de, literal e figuradamente, levar uma vida subterrânea.Isto foi em Nova Orleans, em 1929.Quando escrevo, me perco num vocabulário que me era natural no séculoXVIII, frases elaboradas pelos autores que li. Mas, apesar do sotaque francês, naverdade meu discurso é do barqueiro com o detetive Sam Spade. Assim, esperoque sejam tolerantes comigo quando meu estilo parecer inconsistente. Quando, àsvezes, ele estilhaçar a atmosfera de uma cena do século XVIII.Reapareci no século XX, no ano passado.Foram duas coisas que me despertaram.Primeira — as informações que vinha recebendo de vozes amplificadas,que começaram sua cacofonia no ar por volta da época em que me recolhi paradormir.Refiro-me aqui, é claro, às vozes dos rádios, das vitrolas e, mais tarde, dosaparelhos de tevê. Eu ouvia os rádios dos carros que passavam pelas ruas do velho

Garden District, próximo ao local onde jazia. Ouvia o som das vitrolas e tevês dascasas em torno da minha.Pois bem, quando um vampiro leva uma vida subterrânea, comochamamos — quando pára de beber sangue e apenas fica deitado na terra — empouco tempo torna-se fraco demais para ressuscitar e segue-se um estado desonho.Nesse estado, eu absorvia as vozes de maneira lenta, cercando-as comminhas próprias imagens que criava, como um mortal faz ao dormir. Mas, emalgum momento dos últimos cinqüenta e cinco anos, comecei a me “lembrar” doque estava ouvindo, a acompanhar os programas de entretenimento, a ouvir osnoticiários, as letras e os ritmos das canções populares.E, de maneira muito gradual, comecei a compreender a dimensão dasmudanças que o mundo havia sofrido. Comecei a prestar atenção em certasinformações específicas sobre guerras ou intervenções, certas novas maneiras defalar.Então, desenvolveu-se em mim uma consciência de mim mesmo. Percebique não estava mais sonhando. Estava pensando naquilo que ouvia. Estava bemacordado. Jazia deitado na terra e ansiava por sangue vivificante. Comecei aacreditar que talvez todas as velhas feridas que havia sofrido estivessem curadasagora. Talvez minha força tivesse voltado. Talvez minha força tivesse, na verdade,aumentado como teria ocorrido com o tempo se eu não houvesse sido ferido. Eudesejava descobrir.Comecei a pensar incessantemente em beber sangue humano.A segunda coisa que me trouxe de volta — a decisiva, de fato — foi asúbita presença perto de mim de uma banda de jovens cantores de rock que seautodenominavam Noite de Satã.Eles mudaram-se para uma casa na rua Seis — a menos de um quarteirão

de onde eu estava dormindo calmamente sob minha própria casa na Prytania,próximo ao cemitério Lafayette — e começaram a ensaiar sua música de rock nosótão em algum momento de 1984.Eu podia ouvir o lamento de suas guitarras elétricas, seu canto frenético.Era tão bom quanto as músicas que eu ouvia no rádio e nos aparelhos de somestereofônico e mais melodiosas do que a maioria. Apesar da batida da bateria,havia um romantismo na música. O piano elétrico soava como um cravo.Eu captava imagens dos pensamentos dos músicos que me diziam comoera a aparência deles, o que viam quando olhavam um para o outro e para osespelhos. Eram esguios, fortes e todos jovens mortais adoráveis —enganadoramente andróginos e até um pouco selvagens em suas roupas emovimentos — dois machos e uma fêmea.Quando estavam tocando, abafavam a maioria das outras vozesamplificadas ao meu redor. Mas isto era ótimo.Eu queria levantar-me e me juntar à banda de rock chamada Noite deSatã. Queria cantar e dançar.Mas não posso dizer se, a princípio, havia alguma grande reflexão por trásde meu desejo. Foi mais um impulso dominante, forte o bastante para me fazererguer da terra.Estava encantado com o mundo da música de rock — o modo como oscantores podiam gritar sobre o bem e o mal, se proclamar anjos ou demônios,enquanto os mortais se levantavam para aplaudir. Às vezes, pareciam a purapersonificação da loucura. E, no entanto, era de tecnologia fascinante acomplexidade de sua apresentação. Era selvagem e cerebral, de uma maneira quenão creio que o mundo tivesse algum dia visto em épocas passadas.Claro, era metafórico o delírio. Nenhum deles acreditava em anjos oudemônios, por melhor que assumissem seus papéis. E os atores da velha comédia

italiana tinham sido igualmente chocantes, inventivos, obscuros.No entanto, eram inteiramente novos os extremos a que chegavam, abrutalidade e a provocação — e a maneira como eram aceitos pelo mundo, dosmais ricos aos mais pobres.Havia também algo de vampiresco na música de rock. Ela devia soarsobrenatural mesmo para aqueles que não acreditam no sobrenatural. Refiro-me aomodo como a eletricidade podia sustentar uma única nota para sempre; ao modocomo harmonias podiam ser sobrepostas a outras até você sentir-se dissolvendo-seno som. De tão terrivelmente eloqüente que era essa música. O mundo não tinhavisto nada semelhante antes.Contudo, eu desejava aproximar-me dela. Queria tocá-la. Talvez tornarfamosa a pequena e desconhecida banda Noite de Satã. Eu estava pronto paraaparecer.Demorei uma semana para levantar, mais ou menos. Alimentei-me com osangue fresco de pequenos animais que vivem debaixo da terra, quando podiapegá-los. Depois, comecei a cavar em direção à superfície, onde podia me valer dosratos. A partir dali não foi muito difícil pegar felinos e, por fim, a inevitável vítimahumana, embora tivesse que esperar um longo tempo pelo tipo particular quedesejava — um homem que houvesse matado outros mortais e não demonstrasseremorsos.Um deles chegou num dado momento, caminhando bem junto à cerca,um jovem macho com barba grisalha que havia matado um outro num lugarremoto do outro lado do mundo. Era um verdadeiro assassino. E, ah, aqueleprimeiro gosto de luta e sangue humanos!Roubar roupas nas casas vizinhas, pegar um pouco do ouro e das jóiasque eu havia escondido no cemitério Lafayette, isso não foi problema.Claro que ficava assustado de vez em quando. O cheiro dos produtos

químicos e de gasolina me dava náuseas. O ruído dos aparelhos de ar-condicionadoe o ronco dos aviões a jato no alto feriam meus ouvidos.Mas, depois da terceira noite na superfície, eu estava rugindo por NovaOrleans numa enorme motocicleta Harley-Davidson preta, fazendo um bocado debarulho. Estava procurando mais assassinos para me alimentar. Usava magníficasroupas de couro preto que havia tirado de minhas vítimas, e tinha no bolso umpequeno walkman Sony estéreo, que abastecia minha cabeça com a Arte da Fuga,de Bach, através de minúsculos fones de ouvido, enquanto eu disparava pelas ruas.Eu era o vampiro Lestat outra vez. Estava de novo em ação. NovaOrleans era mais uma vez o meu campo de caça.Quanto à minha força, era três vezes maior do que antes. Eu podia pular darua até o alto de um prédio de quatro andares. Podia arrancar grades de ferro dejanelas. Podia partir ao meio uma moeda de cobre. Podia ouvir vozes epensamentos humanos, quando queria, a quarteirões de distância.No final da primeira semana, consegui uma bonita advogada numarranha-céu de vidro e aço, no centro da cidade, que me ajudou a obter umacertidão de nascimento legal, um cartão do seguro social e uma carteira demotorista. Uma boa parcela de minha velha riqueza estava a caminho de NovaOrleans, procedente de contas numeradas nos imortais Banco de Londres e BancoRothschild.Mas, mais importante, eu estava nadando em descobertas. Sabia que tudoque as vozes amplificadas tinham me dito sobre o século XX era verdade.Enquanto perambulava pelas ruas de Nova Orleans em 1984, pudeobservar o seguinte:O sombrio e melancólico mundo industrial no qual eu adormecera haviadesaparecido enfim, e o velho puritanismo e conformismo burguês haviamperdido sua influência na mentalidade americana.

As pessoas eram, de novo, aventurosas e sensuais da maneira comohaviam sido nos velhos tempos, antes das grandes revoluções da classe média nofinal do século XVIII. Elas até se pareciam como naqueles tempos.Os homens não usavam mais o uniforme de Sam Spade, de camisa,gravata, terno cinza e chapéu cinza. Mais uma vez, se trajavam com veludo e seda,com cores brilhantes, se quisessem. Não precisavam mais cortar o cabelo comosoldados romanos; usavam no comprimento que desejassem.E as mulheres — ah, as mulheres eram maravilhosas, despidas no calorda primavera como se estivessem no Egito dos faraós, com saias muito curtas evestidos que pareciam túnicas, ou usando calças de homem e camisas coladas napele de seus corpos curvilíneos, se quisessem. Pintavam-se e se adornavam comouro e prata, mesmo para ir até a mercearia. Ou saíam de cara limpa e sem enfeites— não tinha importância. Ondulavam os cabelos como Maria Antonieta, oucortavam curto ou deixavam que fossem soprados pelo vento, livremente.Pela primeira vez na história, talvez, elas eram tão fortes e interessantesquanto os homens.E eram essas as pessoas comuns da América. Não apenas os ricos, quesempre possuíram uma certa androginia, uma certa joie de vivre que, no passado, osrevolucionários da classe média chamavam de decadência.A velha sensualidade aristocrática pertencia agora a todos. Estava ligada àspromessas da revolução da classe média, e todas as pessoas tinham direito ao amor,ao luxo e às coisas agradáveis.As lojas de departamentos tornaram-se locais de um encanto quaseoriental — mercadorias expostas entre macios tapetes coloridos, músicasmisteriosas, luz âmbar. Nas drogarias, abertas vinte e quatro horas, frascos dexampu violeta e verde brilhavam como pedras preciosas nas cintilantes prateleirasde vidro. Garçonetes iam para o trabalho dirigindo luzidios automóveis com

estofamento de couro. Trabalhadores das docas iam para casa à noite para nadarnas piscinas térmicas de seus quintais. Faxineiras e bombeiros usavam, no fim dodia, roupas manufaturadas de corte requintado.De fato, a pobreza e a sujeira, que eram comuns nas grandes cidades domundo desde tempos imemoriais, haviam sido removidas quase por completo.Não se viam imigrantes caindo mortos de fome pelos becos. Não haviabarracos onde dormiam de oito a dez pessoas no mesmo quarto. Ninguém jogavalixo nas sarjetas. O número de mendigos, aleijados, órfãos, doentes sem cura haviadiminuído tanto a ponto de não constituir, em absoluto, presença nas ruasimaculadas.Até mesmo os bêbados e loucos que dormiam nos bancos das praças e nasestações de ônibus tinham o que comer com regularidade, e até mesmo rádios paraouvir e roupas limpas.Mas isto era apenas a superfície. O que me deixou estarrecido foram asmudanças mais profundas que impulsionavam essa impressionante corrente.Por exemplo, algo totalmente mágico acontecera com o tempo.O velho não estava mais sendo substituído, de forma rotineira, pelo novo.Pelo contrário, o inglês falado à minha volta era o mesmo do século XIX. Atémesmo a velha gíria (“barra limpa”, “se deu mal” ou “é isso aí”) ainda era “atual”.No entanto, novas e fascinantes frases, como “fizeram sua cabeça”, “Freudexplica” e “não me ligo nessa” estavam nos lábios de todo mundo.No mundo das artes e do entretenimento todos os séculos anterioresestavam sendo “reciclados”. Músicos executavam Mozart tão bem quanto o jazz eo rock; as pessoas iam ver Shakespeare numa noite e, na outra, um novo filmefrancês.Em megalojas iluminadas por luz fluorescente podiam-se comprar fitascom madrigais medievais e tocá-las no som do carro, enquanto se rodava a cento e

quarenta quilômetros por hora nas auto-estradas. Nas livrarias, a poesiarenascentista era vendida lado a lado com os romances de Dickens ou ErnestHemingway. Os manuais sobre sexo ficavam nas mesmas mesas com O livro dosmortos egípcio.Às vezes, a riqueza e limpeza de tudo a meu redor tornavam-se umaespécie de alucinação. Eu pensava estar enlouquecendo.Pelas vitrines das lojas, eu olhava estupefato para computadores etelefones, de forma e cor tão puras quanto as mais exóticas conchas feitas pelanatureza. Gigantescas limusines prateadas navegavam pelas estreitas ruas do bairrofrancês, como indestrutíveis monstros marinhos. Cintilantes torres de escritóriostrespassavam o céu noturno, como obeliscos egípcios acima dos alquebradosprédios de tijolos da velha rua do Canal. Incontáveis programas de tevê jorravamseu fluxo incessante de imagens em cada quarto refrigerado de hotel.Mas não se tratava de uma sucessão de alucinações. Este século herdara aterra em todos os sentidos.E uma parte importante deste milagre imprevisto era a curiosa inocênciadaquelas pessoas bem no meio de toda essa liberdade e riqueza. O deus cristãoestava tão morto quanto estivera no século XVIII. E nenhuma nova religião mitológicasurgira para substituir a antiga.Pelo contrário, as pessoas mais simples desta época se orientavam por umavigorosa moralidade secular tão forte quanto qualquer moralidade religiosa que eujá conhecera. Os intelectuais carregavam as bandeiras. Mas pessoas inteiramentecomuns em toda a América se preocupavam apaixonadamente com a “paz”, os“pobres” e “o planeta”, como se estivessem possuídas por um zelo místico.Tencionavam acabar com a fome neste século. Erradicariam as doenças aqualquer preço. Questionavam ferozmente a pena de morte e o aborto. Ecombatiam as ameaças da “poluição ambiental” e da “guerra de holocausto”, com

tanta violência quanto em épocas passadas combateram a bruxaria e a heresia.Quanto à sexualidade, já não era mais uma questão de superstição e medo.Ela estava sendo despojada dos últimos traços de religiosidade. Era por isso que aspessoas andavam meio nuas. Era por isso que se beijavam e se abraçavam nas ruas.Agora conversavam sobre ética, responsabilidade e beleza do corpo. A procriaçãoe as doenças venéreas estavam sob controle.Ah, o século XX. Ah, o giro da grande roda.Superara os sonhos mais desvairados este futuro. Transformara em tolosos profetas sinistros de épocas passadas.Eu pensava muito nessa inocente moralidade secular, nesse otimismo.Neste mundo brilhantemente iluminado onde o valor da vida humana era maiordo que havia sido antes.Na penumbra âmbar de um amplo quarto de hotel, eu acompanhava natela diante de mim um filme de guerra muito bem realizado, intitulado ApocalypseNow. Era uma sinfonia de som e cores que cantava a antiqüíssima batalha domundo ocidental contra as forças do mal. “Você deve tornar-se amigo do horror edo terror moral”, diz o comandante no jardim selvagem do Camboja, a quem ohomem ocidental responde como sempre respondeu: “Não.”Não. O horror e o terror moral jamais podem ser absolvidos. Não têmnenhum valor real. O puro mal não tem lugar.E isto significa, creio, que eu não tenho lugar.A não ser, talvez, na arte que repudia o mal — nas histórias em quadrinhosde vampiros, nos romances de terror, nos velhos contos góticos — ou nasensurdecedoras canções de estrelas do rock que representam no palco as batalhascontra o mal que cada mortal trava consigo mesmo.Era o bastante para fazer um monstro do Velho Mundo voltar paradebaixo da terra, essa irrelevância atordoante do poderoso desígnio das coisas,

suficiente para fazê-lo deitar-se e chorar. Ou suficiente para fazê-lo tornar-se umcantor de rock, quando se pensa no assunto.Mas onde estavam os outros monstros do Velho Mundo? Eu meperguntava. Como outros vampiros existiam num mundo em que cada morte eraregistrada em gigantescos computadores eletrônicos, e os corpos eram levadospara criptas refrigeradas? Provavelmente escondendo-se nas sombras qual insetosrepugnantes, como sempre fizeram, não importa quanta sabedoria havia no quediziam ou quantos seguidores conseguissem conquistar.Bem, quando eu erguesse minha voz com a pequena banda chamada Noite de Satã,em pouco tempo traria todos para a luz.Eu prosseguia com minha educação. Falava com mortais em pontos deônibus, postos de gasolina e em bares elegantes. Lia livros. Enfeitava-me com asvistosas peles das lojas da moda. Usava camisas brancas de gola rolê e jaquetas tiposafári cáqui franzidas, ou extravagantes blazers de veludo cinza com lenços decashmere no pescoço. Usava pó-de-arroz no rosto de modo que pudesse “passar”sob as luzes químicas dos supermercados abertos a noite inteira, das espeluncasque vendiam hambúrgueres, dos locais públicos de diversão chamados de boates.Eu estava aprendendo. Estava apaixonado.E o único problema que tinha era o fato de serem escassos os assassinospara me alimentar. Nesse mundo brilhante de inocência e abundância, de bondadee alegria e estômagos cheios, quase haviam desaparecido os ladrões degoladores dopassado e seus perigosos antros na zona portuária.E, assim, tive que trabalhar para viver. Mas eu sempre fora um caçador.Gostava dos salões de sinuca sombrios e enfumaçados com uma única lâmpadabrilhando sobre o feltro verde, enquanto ex-prisioneiros tatuados se reuniam emvolta, tanto quanto gostava das cintilantes boates revestidas de cetim, dos grandeshotéis de concreto. E o tempo todo estava aprendendo mais sobre meus

assassinos — os traficantes de drogas, os cafetões, os criminosos que se juntavamàs gangues de motoqueiros.E, mais do que nunca, eu estava decidido a não beber sangue inocente.Enfim era hora de visitar meus antigos vizinhos, a banda de rockchamada Noite de Satã.Às seis e meia de uma noite quente e abafada de sábado, toquei acampainha da porta do estúdio de música do sótão. Todos os lindos e jovensmortais estavam por lá, com suas coloridas camisas de seda e jeans bem apertados,fumando cigarros de haxixe e se queixando da má-sorte para conseguirapresentações no sul do país.Pareciam anjos bíblicos, com seus cabelos longos e desgrenhados emovimentos felinos; suas jóias eram no estilo egípcio. Até para ensaiar, pintavam orosto e os olhos.Fiquei cheio de excitação e amor só de olhar para eles, Alex e Larry e asuculenta pequena Biscoito Doce.E, num extraordinário momento em que o mundo pareceu ficar paradosob meus pés, eu lhes disse o que eu era. Nada de novo para eles, a palavra“vampiro”. Na galáxia em que brilhavam, milhares de outros cantores haviamusado os caninos artificiais e a capa preta.E, no entanto, me senti tão estranho ao falar isto em voz alta para mortais,a verdade proibida. Jamais em duzentos anos eu dissera isto para alguém que nãohouvesse sido marcado para se tornar um de nós. Nem mesmo para minhasvítimas confidenciei isto antes que seus olhos se fechassem.E agora eu o dizia, clara e distintamente, para aquelas belas e jovenscriaturas. Eu lhes disse que queria cantar com eles, que, se confiassem em mim,todos seríamos ricos e famosos. Que, numa sobrenatural e implacável onda deambição, eu os tiraria daqueles quartos e os levaria para o grande mundo.

Seus olhos estavam embaçados quando olharam para mim. E o pequenoaposento de estuque e adobe do século XX vibrou com suas gargalhadas de prazer.Eu era paciente. Por que não haveria de ser? Sabia que era um demônioque podia imitar quase todo som ou movimento humanos. Mas como poderiaesperar que eles compreendessem? Fui até o piano elétrico e comecei a tocar e acantar.Comecei imitando as canções de rock e depois velhas melodias e letrasvieram à minha mente — canções francesas enterradas no fundo de minha alma,mas jamais esquecidas — e as envolvi em ritmos brutais, vendo diante de mim umpequeno teatro parisiense com diminuta platéia, de séculos atrás. Uma perigosapaixão brotou em mim. Ameaçou meu equilíbrio. Perigoso que isto acontecessetão cedo. No entanto, continuei cantando, martelando as teclas lisas e brancas dopiano elétrico, e alguma coisa se abriu em minha alma. Não importava que aquelasternas criaturas mortais reunidas à minha volta jamais soubessem.Era suficiente que estivessem jubilosos, que adorassem a música estranhae desconjuntada, que estivessem gritando, que vissem prosperidade em seu futuro,o ímpeto que lhes faltara antes. Ligaram os gravadores e começamos a cantar etocar juntos, a improvisar, como eles diziam. O estúdio estava inundado com ocheiro de seu sangue e nossas canções ensurdecedoras.Mas então sobreveio um choque que eu jamais havia previsto em meussonhos mais estranhos — algo tão extraordinário quanto havia sido minhapequena revelação àquelas criaturas. De fato, foi tão avassalador que poderiater-me impelido para fora de seu mundo e de volta para debaixo da terra.Não estou dizendo que teria ido de novo para o sono profundo. Mas eupoderia ter-me afastado do Noite de Satã e ficado alguns anos vagando semdestino, atordoado e tentando recuperar a razão.Os rapazes — Alex, o jovem baterista suave e delicado, e Larry, seu

irmão mais alto, de cabelos louros — reconheceram meu nome quando lhes disseque era Lestat.Não apenas o reconheceram, como o relacionaram a uma série deinformações a meu respeito que haviam lido em um livro.De fato, acharam maravilhoso o fato de eu não estar fingindo ser umvampiro qualquer. Ou o conde Drácula. Todo mundo estava cheio do condeDrácula. Acharam maravilhoso eu estar querendo ser o vampiro Lestat.— Querendo ser o vampiro Lestat? — perguntei.Eles riram do modo como carreguei no sotaque francês.Olhei para eles durante um longo momento, tentando sondar seuspensamentos. Claro que eu não esperava que acreditassem que eu fosse umvampiro de verdade. Mas terem lido sobre um vampiro, personagem de ficção,com um nome tão incomum quanto o meu. Como explicar isto?Mas eu estava perdendo minha autoconfiança. E quando perco aconfiança, meus poderes se esgotam. O pequeno quarto parecia estar ficandomenor. E havia algo de repelente e ameaçador nos instrumentos, nas antenas, nosfios.— Mostrem-me o livro — eu disse.Trouxeram do outro quarto um pequeno “romance” em papel inferior,caindo aos pedaços. A encadernação se soltara, a capa estava rasgada e as folhasestavam presas por um elástico.Tive uma espécie de calafrio sobrenatural quando vi a capa. Entrevista com ovampiro. Algo relacionado a um jovem mortal que se comunicava com ummorto-vivo.Com a permissão deles, fui para o outro aposento, estiquei-me na camadeles e comecei a ler. Quando cheguei na metade, levei o livro comigo e saí da casa.Fiquei parado imóvel debaixo da luz de um poste na rua com o livro, até

terminá-lo. Depois coloquei-o com cuidado no bolso interno do casaco.Não voltei a me encontrar com a banda durante várias noites.Durante grande parte desse tempo, fiquei perambulando de novo,fazendo estardalhaço pela noite em minha moto Harley-Davidson, com asVariações Goldberg, de Bach, tocando a todo volume. E me perguntava: Lestat, oque você quer fazer agora?E, no resto do tempo, estudava com ânimo redobrado. Lia enciclopédiase livros da historiado rock, as biografias de seus astros. Ouvia os álbuns e refletiaem silêncio vendo videoteipes dos concertos.E quando a noite estava tranqüila e serena, ouvia as vozes de Entrevista como vampiro cantando para mim, como se viessem do túmulo. Li o livro várias e váriasvezes. E então, num momento de profunda indignação, rasguei-o em pedaços.Por fim tomei uma decisão.Encontrei-me com minha jovem advogada, Christine, em seu escritórioescuro num arranha-céu, iluminado apenas pelas luzes da cidade. Ela pareciaencantadora contra as janelas de vidro, os prédios sombrios mais adiante formandoum terreno deserto e primitivo no qual ardiam milhares de tochas.— Já não basta mais que minha pequena banda de rock seja bem-sucedida— eu lhe disse. — Precisamos criar uma fama que leve meu nome e minha voz àspartes mais remotas do mundo.De forma tranqüila e inteligente, como os advogados estão acostumados afazer, ela me aconselhou a não arriscar minha fortuna. No entanto, à medida quereafirmava minha determinação maníaca, pude sentir que a estava seduzindo, quedissolvia pouco a pouco sua noção de bom senso.— Os melhores diretores franceses de vídeos de rock — eu disse. —Você deve encontrá-los em Nova York e Los Angeles. Tem bastante dinheiro paraisso. E aqui, com certeza, você pode arranjar um estúdio em que faremos nosso

trabalho. Os jovens produtores de discos que mixarão o som depois. tambémdeve contratar o melhor. Não importa o quanto vamos gastar nessa aventura. Oimportante é que seja orquestrada, que façamos nosso trabalho em segredo até omomento da revelação, quando nossos álbuns e nossos filmes serão divulgadoscom o livro que tenciono escrever.No final, sua cabeça estava nadando com sonhos de riqueza e poder. Suacaneta disparava enquanto ela tomava notas.E o que eu sonhava enquanto falava com ela? Sonhava com uma rebeliãosem precedentes, com um grande e espantoso desafio a todos os da minha espécieno mundo inteiro.— Esses vídeos de rock — eu disse. — Você deve encontrar diretores quecompreendam minha visão. Os filmes devem formar uma seqüência. Precisamcontar a história que está no livro que quero criar. E, as canções, muitas delas jáescrevi. Você deve conseguir os melhores instrumentos. sintetizadores, os maissofisticados sistemas de som, guitarras elétricas, violinos. Podemos tratar de outrosdetalhes mais tarde. A confecção das roupas de vampiro, o método deapresentação nas estações de televisão, a administração de nossa primeira apariçãopública em San Francisco. tudo isso veremos em momento oportuno. O que éimportante agora é você dar os telefonemas, conseguir as informações de queprecisa para começar.Só voltei

soube cultivar o savoir-vivre ao longo dos tempos. Nesse livro, segundo volume das crônicas vampirescas, Lestat narra suas incríveis experiências na busca incessante do êxtase e do significado de sua sombria imortalidade. O vampiro Lestat é o

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1 Ha ocurrido algo maravilloso; algo que hasta el momento sólo sucedía en las historias de misterio: Anton ha conocido a Rüdiger, un vampiro de los de verdad.

exquisite harmony. Arching her neck in some higher ecstasy, Maudy looks across the makeshift studio and suddenly stops playing. ALEX What the hell, Maudy. Seeing Maudy's stunned face, Alex and James turn to see Lestat perched like a raven on top of the stack of speakers, eyes closed, still humming to the fading reverb of the guitars.

the Pops " and on the Continent, probably in some parts of Asia, and in Japan. Video cassettes of the whole series of clips are selling . I began listening for specific pieces of information about wars or inventions, certain . I wanted to sing and to dance. But I can't say that in the very beginning there was great

Beautiful, Follies, Grease, Lestat, The Threepenny Opera, The Pajama Game, Little Women, I Am My Own Wife, and The Look of Love. Courtney Smith (Costume Designer) is a graduating senior at Montclair State University majoring in BFA Theatre Production/Design with a concentration in costume and hair and makeup design.

—¡Hola, V.B.! —gritó Micah, el marido de Charlsie Tooten. Bill devolvió el saludo con un gesto despreocu-pado, y mi hermano Jason dijo, con un tono de lo más edu-cado: —Buenas noches, Vampiro Bill. Jason, que en su día no había dado precisamente la bienvenida a Bill a nuestra pequeña familia, había cambia-do de cabo a rabo.

Antoine de Saint-Exupéry, Il re del 325 166 Angela Nanetti, L'uomo che coltivava le comete 170 CONFRONTI 174 TESTO INTEGRALE Satyajit Ray, Il vampiro malvagio 176 H. Rider Haggard, Twala: il re Michael Ende, Un uragano inventato e un temporale vero Saper ascoltare, parlare, scrivere SCRIVERE 184 PARLARE 186 Verificare Walter R. Brooks .

American Gear Manufacturers Association franklin@agma.org June 15, 2012. at Happened in the 2011 US Gear Market? mand for gears was up sharply in the US because of the mendous investment in “traditional” capital equipment. en though gear demand was up 28%, domestic shipments rose only %. The gap was filled by record gear imports (in terms of levels rowth), a 33% rise. ports were due to a .

quick and effective way of deciding whether students are ready to enjoy the next level of Penguin Readers. There are six levels of test, corresponding to levels 1–6 of the Penguin Readers.There are two tests at each level, the B Test providing a follow-up for re-testing in the event of the majority of the class not obtaining the requisite score. Each test is in multiple-choice format and so .