O Processo De Aprendizagem-21x27 - UFBA

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O PROCESSO DE APRENDIZAGEMe seus transtornos

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAReitoraDora Leal RosaVice ReitorLuiz Rogério Bastos LealEDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIADiretoraFlávia Goulart Mota Garcia RosaCONSELHO EDITORIALAlberto Brum NovaesÂngelo Szaniecki Perret SerpaCaiuby Alves da CostaCharbel Ninõ El-HaniCleise Furtado MendesDante Eustachio Lucchesi RamacciottiEvelina de Carvalho Sá HoiselJosé Teixeira Cavalcante FilhoMaria Vidal de Negreiros Camargo

FÉLIX DÍAZO PROCESSO DE APRENDIZAGEMe seus transtornosSalvadorEDUFBA2011

2011 by Félix DíazDireitos para esta edição cedidos à Edufba.Feito o depósito legal.Projeto gráfico, capa e programação visualRodrigo Oyarzábal SchlabitzRevisãoNídia M. L. LubiscoNormalizaçãoNormaci Correia dos SantosSistema de Bibliotecas - UFBADíaz, Félix.O processo de aprendizagem e seus transtornos / Félix Díaz. - Salvador : EDUFBA, 2011.396 p. il.ISBN 978-85-232-0766-31. Aprendizagem. 2. Psicologia da aprendizagem. 3. Distúrbios da aprendizagem Tratamento. I. Título.CDD - 370.19Editora filiada aAssociação Brasileira deEditoras UniversitáriasEDUFBARua Barão de Jeremoabo, s/n, Campus de Ondina,40170-115, Salvador-BA, BrasilTel/fax: (71) 3283-6164www.edufba.ufba.br edufba@ufba.br

A minha família cubano-brasileira, a meus antigos enovos amigos e colegas, a meus alunos de lá e daqui, comos quais compartilho minha alegria de ser útil.

Gracias a la vida. que me ha dado tantoMe ha dado la risa y me ha dado el llantoVioleta Parra

SUMÁRIOAPRESENTAÇÃO / 11PREFÁCIO / 15INTRODUÇÃO / 19Capítulo 1A APRENDIZAGEM HUMANA / 27UM POUCO DE HISTÓRIA E ALGO SOBRE AS TEORIAS DA APRENDIZAGEM / 27A teoria da aprendizagem por associação do tipo comportamentalista / 29A teoria verbal significativa da aprendizagem / 29A teoria cognitiva baseada no processamento da informação / 33A teoria psicogenética da aprendizagem / 36A teoria sociohistórico e cultural da aprendizagem e do ensino / 41Sobre o desenvolvimento e as zonas de desenvolvimento / 45Sobre os instrumentos, os signos e a palavra / 58Sobre a internalização dos signos / 65CONCLUSÕES / 74Capítulo 2ESTUDO DA APRENDIZAGEM / 81O QUE É A APRENDIZAGEM E SUA AVALIAÇÃO / 81COMO APRENDEMOS? / 98O processo de internalização na aprendizagem / 102O processo de significação na aprendizagem / 114A formação de conceitos / 119A solução de problemas / 139Aprendizagem de valores e atitudes / 148Aprendizagem de habilidades e hábitos / 160FATORES PRESENTES NA APRENDIZAGEM / 174As estratégias ou estilos da aprendizagem / 174A inteligência e a aprendizagem / 177A personalidade na aprendizagem, o herdado e o adquirido / 188A maturidade do sistema nervoso e a base neuropsicológica da aprendizagem / 194

A MEDIAÇÃO DA APRENDIZAGEM E OS ESTILOS DE ENSINO / 219A mediação social e individual / 229CONCLUSÕES / 239Capítulo 3AS ALTERAÇÕES DA APRENDIZAGEM / 245SOBRE O CONCEITO DE ALTERAÇÕES DE APRENDIZAGEM E SUA CLASSIFICAÇÃO / 247MINHA PROPOSTA QUANTO ÀS ALTERAÇÕES DA APRENDIZAGEM / 268OS TRANSTORNOS GERAIS DA APRENDIZAGEM: OS CHAMADOS TGA E SUAS CAUSAS / 276OS TRANSTORNOS ESPECÍFICOS DA APRENDIZAGEM: OS CHAMADOS TEA E SUAS CAUSAS / 289SOBRE OS TRANSTORNOS ESPECÍFICOS DA APRENDIZAGEM: DISLEXIA, DISGRAFIA EDISCALCULIA / 300Dislexia / 301Disgrafia / 312Discalculia / 318ALGORITMO INTERVENTIVO DOS TRANSTORNOS DA APRENDIZAGEM / 326A atividade diagnóstica / 326Avaliação da Dislexia / 334Avaliação da Disgrafia / 338Avaliação da Discalculia / 339A atividade terapêutica / 340Tratamento da Dislexia / 342Tratamento da Disgrafia / 345Tratamento da Discalculia / 345Prevenção e acompanhamento dos transtornos da aprendizagem / 349Sobre a psicopedagogia e os transtornos da aprendizagem / 354CONCLUSÕES / 386REFERÊNCIAS / 389

APRESENTAÇÃOPara o especialista cuja ação profissional transcorre dentro de um bom nível de realização pessoal, é muito comum apaixonar-se por algum tema em particular, sobretudo quando há oportunidadede agir em diferentes temáticas no percurso de sua atividade científica e de constatar a importância desua ciência, principalmente no que diz respeito a melhorias que ela pode trazer ao ser humano.Tal é o caso desta obra. Produto de uma experiência individual, ela foi elaborada na perspectivade compartilhar critérios pessoais num contexto bibliográfico, histórico e mundial, com o fim plenamente consciente de problematizar os assuntos tratados e assim levantar preocupações para motivaro seu aprofundamento dentro de uma ótica humanista, qual seja a de favorecer o desenvolvimentoadequado das potencialidades do crescimento individual e social.No meu contato com a Psicologia, sob os pontos de vista clínico, investigativo e docente, tive aoportunidade de descobrir quão maravilhoso é conhecer os caminhos, às vezes intrincados, da psiquehumana, sem perder de vista que os fenômenos psicológicos formam parte de um sistema dialéticodo homem: sua unidade biopsicossocial.Todos os fenômenos psicológicos apresentam este “encanto”, porém alguns são mais “mágicos”que outros; e para quem subscreve os fenômenos da linguagem e da aprendizagem são as estrelasmais brilhantes dessa “constelação mágica” por constituírem as duas aquisições mais monumentaisque, em estreita relação, o homem logrou desenvolver no curso de sua existência filogenética eontogenética.No conteúdo aqui apresentado, excursionaremos especificamente pela problemática da aprendizagem, sem esquecer que a linguagem, ela própria, é resultado da aprendizagem individual do sujeitoque a constroi e resultado social da cultura. Assim, o primeiro capítulo está dedicado a caracterizar aaprendizagem humana, salientando sua essência no campo da “normalidade”, pois não podemosestudar o que está fora dessa norma, isto é, suas alterações, sem suficiente clareza das manifestaçõesnormais.No segundo capítulo, abordam-se os diferentes desvios que se pode encontrar na aprendizagem,tanto os chamados “desvios secundários”, que verdadeiramente não são inerentes a ele, e os querealmente constituem “desvios primários” da aprendizagem, fazendo nossa a consideração apontadapor Zorzi (2003, p. v-vi) na apresentação de seu livro, Aprendizagem e distúrbios da linguagem escrita, dequeEmbora, de fato, possamos encontrar crianças com reais dificuldades de aprendizagem, elas correspondem, felizmente, a uma minoria. Por outro lado, e infelizmente,a grande maioria não aprende por falta de propostas e condições educacionais maisO processo de aprendizagem e seus transtornos - 11

apropriadas, caracterizando o que podemos chamar de “pseudo” distúrbios de aprendizagem: projetam-se no aprendiz as deficiências do ensino.Ainda, dentre estes “desvios primários”, diferenciaremos os que na verdade devem ser considerados como transtornos da aprendizagem e requerem uma atenção especial, própria de uma necessidade educativa especial.Esta diferenciação se baseia numa pesquisa (DÍAZ RODRÍGUEZ, 1998) onde se propõe trêsníveis de desvios da aprendizagem: “problemas, dificuldades e transtornos” sobre os quais é imprescindível obter um correto diagnóstico e, assim, indicar seu consequente e adequado atendimento.Esta proposta se apresenta no capítulo 3.Chamo a atenção de que parto do critério de considerar os desvios de aprendizagem – e, emparticular, seus transtornos conhecidos como transtornos gerais da aprendizagem (TGA) e transtornos específicos da aprendizagem (TEA) – como distúrbios que acontecem durante a aprendizagem enão depois dela, quando podem acontecer outras alterações similares, porém bem diferentes. Enfatizotambém que considero esses distúrbios diferenciados das dificuldades normais, as quais podem aparecer como resultado do próprio processo de aprendizagem, devido à complexidade que ele apresentae das particularidades individuais para aprender.No capítulo 4, desenvolvo algumas considerações sobre a prevenção, o diagnóstico, o tratamento e o seguimento de forma sistêmica (algoritmo interventivo), finalizando com o papel daPsicopedagogia neste contexto.Esclareço, ainda, que atribuí certa independência aos assuntos abordados ao apresentá-los emdiferentes capítulos, visando a dar alguma facilidade operativa àquele leitor que só esteja interessadoem algum particular e não na obra toda.Quanto à visão geral que matiza esta obra e conhecendo as diferentes concepções sobre a realidade, destaco uma proposta atual que começou a arraigar-se na década de 1960, conforme anunciaWolman (1967, p. 4):A psicologia contemporânea apresenta o alentador fenômeno da aproximação entresuas diferentes escolas. Ainda estamos longe de uma teoria psicológica amplamenteaceita e continuamos divididos em grupos [.] embora hoje exista, especialmente napsicologia norte-americana, um crescente desejo de uns aprenderem dos outros. E seestá produzindo rapidamente um aumento da evidência empírica, tanto experimentalcomo clínica, assim como um crescente desejo de assimilá-la. Os homens pertencem adistintas escolas de pensamento, têm aprendido a respeitar os aportes realizados pelosseus adversários e existe um desejo de mudança da informação relativa aos dadosempíricos e à sua interpretação teórica. Na atualidade, os psicólogos mostram maiorpredisposição em comprovar as hipóteses desenvolvidas independentemente pelosdiferentes teóricos e uma crescente inclinação a apropriar-se dos conceitos alheios.Confesso minha adesão consciente ao posicionamento anterior por considerar que as diferentesteorias não comportam tudo que compõe a psique humana, a partir da certeza de que cada uma delasé insuficiente por si mesma para abordar todas as problemáticas psicossociais do ser humano.12 - Félix Díaz

Como um flash, lembrei de uma frase de Nietzsche que pode resumir a ideia anteriormenteexpressa: “As convicções são cárceres”.Embora minha visão teórica seja “aberta”, ou seja, não segue dogmaticamente uma linha só – e,por conseguinte, o mesmo ocorre com minha prática profissional –, não nego a grande simpatia quetenho pela concepção sociohistórica e cultural de Vygotsky e seus seguidores acerca da abordagempsicossocial dos fenômenos humanos.Independente de que a obra original de Vygotsky seja parcialmente criticável, pois no final éinconclusa e às vezes contraditória (lacunas que foram e são eliminadas paulatinamente pelos seusseguidores), quiçá me una ao seu pensamento naquilo que Morato (1995, p. 8) diz numa autoanálisee que a seguir se reproduz:[.] acabamos por manter com Vygotsky o que Wittgenstein em Investigações Filosóficas (1975) chama de ‘semelhanças de família’, referindo-se a conceitos cujasaplicações não são regidas por uma essência imutável ou a posições que não seriaminconciliáveis entre si.Com tal “salvo-conduto”, considerar Vygotsky – e com ele o posicionamento sociohistórico ecultural construído por seus seguidores – constitui um guia metodológico importante para minhapráxis, que vem se manifestando conscientemente no dia-a-dia de minha existência; portanto,logicamente, ele norteará os apontamentos que, com satisfação, coloco à disposição de um leitor,oxalá crítico e exigente e ao mesmo tempo compreensívo e dialógico, para juntos colocarmos outra“pedrinha” no correto e real desenvolvimento humano, especificamente no que se refere à aprendizagem, principalmente, de nossas crianças e alunos.Assim, meu alvo principal são professores e psicopedagogos e, como convidados, aqueles dirigentes, pais e outros especialistas e profissionais interessados neste debate, motivo que justifica ainclusão no capítulo 4, da Psicopedagogia e seus recursos, como o ato de aprender e reaprender.Alguns dos assuntos foram utilizados como material (inédito) para o desenvolvimento de seminários de aprofundamento, realizados por meus alunos do curso de Pedagogia, na disciplina de Psicologia da Educação e de Construção do Conhecimento, do Doutorado em Educação, ambos da Universidade Federal de Bahia (UFBA), aos quais agora publicamente agradeço por suas contribuições,assim como à minha parceira sentimental, a Dra. Desirée Begrow, pela sua imensa colaboração desempre.Ressalto que na construção desta obra tratei de exprimir ao máximo minha modesta experiêncianeste campo da aprendizagem, tanto no que diz respeito ao processo, como a seus resultados numaótica “normal” e nos seus desvios.A bibliografia utilizada não esgota a imensa literatura dedicada aos problemas que comento eque para não converter esta escrita numa tarefa hercúlea me obriga a não referi-la em sua totalidade.Deste modo, tomei como base os mais próximos às minhas possibilidades de consulta, coletandotanto autores renomados estrangeiros como reconhecidos especialistas brasileiros. De maneira particular, destaco compatriotas meus, não com espírito chauvinista e sim para render homenagem a essesO processo de aprendizagem e seus transtornos - 13

cientistas que modestamente contribuíram e ainda contribuem, em meu país e em outras partes domundo, para enriquecer a teoria e a prática que sustentam os conhecimentos que exponho.Claro está que para realizar este esforço tive que revisar uma extensa bibliografia impressa eeletrônica, inclusive anotações feitas em livrarias visitadas, buscas estas que me permitiram encontrar algumas das informações procuradas. Neste particular, não subestimei obras antigas que, paraalguns, podem parecer “desatualizadas”, critério associado à data de edição mais que à importânciado conteúdo da obra.Assim, advirto que não pretendo repetir o que sobejamente aparece na literatura especializadade forma detalhada e correta, enchendo linhas para acumular páginas; portanto, mais que informações muito conhecidas (porém necessárias para os objetivos deste livro) e outras menos conhecidas,emprestadas ou de minha autoria como referências para provocar o debate, parto do que bem dizPaquay (1994 apud PERRENOUD, 2000, p. 15): “[.] Consideramos um referencial como um instrumento para precisar as práticas, debater sobre o ofício, determinar aspectos emergentes ou zonascontraversas”.Assim, meu principal interesse é trazer pareceres sintéticos que sirvam de base para esclarecimentos imprescindíveis, visando a uma correta compreensão do processo de aprendizagem em si,assim como de suas alterações, entre as quais privilegio as que considero os verdadeiros transtornosda aprendizagem.Desta forma, gostaria de chamar a atenção, a partir dos enfoques dados, de modo a responder aoclamor, às vezes silencioso, de um ensino geral que potencialize o aprender, assim como de umaeducação especial que realmente considere a diversidade, existente e às vezes negada, dos alunos comtranstornos da aprendizagem.Félix Díaz Rodríguez14 - Félix Díaz

PREFÁCIOO livro do professor Félix Díaz, que tenho o prazer de apresentar, representa um verdadeirotratado sobre o tema da aprendizagem e seus transtornos. Um livro é uma expressão não só dointelecto do autor que escreve, mas também de sua própria personalidade. E este livro não é umaexceção: o caráter aberto, franco, entusiasta, otimista e a bondade do autor, tomam forma nopercurso de suas páginas. É um livro culto, denso, cheio de ideias, ademais agradável de ler. Nãoobstante, na quantidade de informação que encontramos em cada um de seus capítulos, o autormantém sua capacidade de desenvolver seu ponto de vista frente a cada uma das questões trabalhadas no texto.Sua escrita expressa um modelo dialético de pensar, onde ele evita posições dogmáticas e ondefacilmente avança sobre diversos temas, com uma relação assombrosa, mostrando a complexidade eas contradições existentes. Assim, o autor não evita a discussão e a crítica, porém nos mostradiafanamente o que há de útil em cada teoria para o tratamento do tema.O livro está integrado por quatro capítulos vinculados entre si e através dos quais se faz umaanálise exaustiva do fenômeno da aprendizagem e seus transtornos, a partir das colocações econsequências das teorias relacionadas, assim como de diferentes autores para cada uma das questões desenvolvidas no texto.Embora o autor se centre intencionalmente na teoria cultural-histórica de Vygotsky, no primeirocapítulo faz um resumo de algumas das teorias mais significativas sobre a aprendizagem, e tal relatotransita com a precisão e a segurança de um experto, onde os diferentes autores e suas ideias sãotratados na sua complexidade, numa excelente síntese num quadro amplo e bem fundamentado dasteorias da aprendizagem.Particularmente, achei muito interessante sua apresentação da teoria de Piaget, explorando detalhes e reavaliando questões que se encontram pouco nos textos atuais referidos a esse importanteautor. Repetidamente, encontramos relações originais e bem fundamentadas entre Piaget e Vygotsky,sem deixar de assinalar as importantes diferenças entre eles, similitudes e contradições com as quaiscompartilho plenamente.Sua inclinação pelo enfoque cultural e histórico não se manifesta de forma passiva; de fato, eledefende uma definição sociohistórica e cultural que pretende preservar o caráter cultural do socialhumano, sem perder de vista seu caráter histórico, o que pode parecer um detalhe insignificante,porém não é, pois a base para uma representação sociohistórica e cultural da mente está no carátercultural dos processos sociais humanos, sem que isto negue sistemas e relações sociais que formamparte de complexas constelações de fatores econômicos, jurídicos e institucionais que não necessariamente se explicam pela cultura, ainda que sempre tomem uma expressão cultural.O processo de aprendizagem e seus transtornos - 15

No seu tratamento de Vygotsky, Félix enfatiza o segundo momento da obra do cientista russo(1928-1931), portanto, a mediação semiótica, o signo e a interiorização, embora ele também analiseum dos temas centrais do último momento da obra de Vygotsky: a situação social do desenvolvimento, questão que se bem o autor russo tratou de maneira muito breve, resultou essencial para rompercom a ideia determinista e sociologista da formação cultural da mente. Não é casual que o própioFélix utilize tal conceito para diferenciar as obras de Vygostky e Piaget.É assim, com esse frescor e espontaneidade com que o autor transita no tema todo, que tambémo faz se expor sem medo nas suas contradições no tema por sua forma aberta, sincera e honesta decolocar-se frente aos problemas que debate.Assim, na sua análise do pensamento de Vygotsky defende a ideia da interiorização, quiçá,segundo minha opinião, uma das ideias vygotskianas que marcam uma orientação mais assimilativade que criativa com relação ao conhecimento. Inclusive resulta interessante que, sem considerá-locomo uma crítica, o autor destaca a similitude entre a interiorização de Vygotsky e os conceitos dePiaget.Quero dizer que a interiorização representa um dos temas mais polêmicos da obra de Vygotsky,precisamente pela prioridade que dá ao externo na gênese do propriamente psicológico, sendo umconceito bastante criticado na própria Psicologia soviética por autores como Rubinstein, Ananiev,Lomov, Orlov, Abuljanova, Bruchlinsky e Matiushkin, entre outros. Na Psicologia cubana, as críticasa esse conceito aparecem na minha obra desde 1979. (GONZÁLEZ REY, 1995)Não obstante, o mais interessante da posição de Félix no tratamento desse assunto é que, semexpressar de forma explícita uma crítica a tal conceito, vai mais além da definição de Vygotsky, expressando finalmente:Assim na base complexa do mecanismo de todo aprendizado e que estamos definindo como interiorização, encontramos, formando um verdadeiro sistema operativo,percepções de todo tipo, ideias geradas mentalmente, determinados afetos e atividades psicomotoras, condicionadas pela motivação e pelo processo de atenção.Desta forma, o autor percebe que a interiorização não pode deixar de fora os afetos nem as“ideias geradas mentalmente”, ou seja, não pode deixar de fora o caráter gerador do sujeito queaprende algo que não está presente no conceito elaborado por Vygotsky, mesmo que, sim, represente uma das contradições que atravessaram a obra vygotskyana e que, de certa maneira, também atravessam o presente livro: a defesa do caráter criativo e gerador da pessoa e o caráterreflexo da psique humana, pois se a psique é um reflexo, então a subjetividade humana transforma-se num epifenômeno do externo. e, como ser criativo se minha psique é um reflexo? Precisamente a definição de “situação social do desenvolvimento” permite a Vygotsky ir alám da ideiade reflexo, quando coloca que toda influência externa tem sentido para o desenvolvimento, apartir da vivência que resulta da estrutura interna da pessoa, no momento de receber aquelainfluência. Ou seja, é impossível pensar que o externo atua de forma imediata, direita e linearsobre o desenvolvimento psíquico.16 - Félix Díaz

Devo destacar que os cientistas sociais soviéticos tentaram fugir dos limites da ideia de reflexopor meio da ideia de refração, usada por Rubinstein, Voloshinov e pelo próprio Vygotsky em outrosmomentos de sua obra; neste contexto, o autor do presente livro conclui de forma acertada que[.] a experiência que desenvolve a pessoa durante e como resultante de sua aprendizagem em concordância com seus interesses individuais e as necessidades sociaisno contexto escolar e o próprio social, haverá de implicar um maior ou menor desenvolvimento da capacidade de aprender.Embora essa seja uma ideia central que o autor não vai desenvolver logo no texto, acredito querepresente uma importante questão para a discussão da aprendizagem numa perspectiva sociohistóricoe cultural como a defendida neste livro.Na minha perspectiva, a aprendizagem se produz não somente pelo intelecto; ela é uma expressão completa da pessoa que aprende a história na qual aparece de forma simbólico-emocional comoaspecto central da motivação desse processo, pois os aspectos institucionais e sociais dos contextosda aprendizagem se configuram nos espaços da subjetividade social no qual o sujeito aprende. Essaideia é importante para tirar o tema da aprendizagem de uma ótica estritamente individual aindadominante, aspecto que não escapa a Félix, mesmo que não se aprofunde nela.Na amplitude do tratamento do tema que este livro propõe, aparece um assunto no segundocapítulo que merece uma discussão em profundidade: a aprendizagem de atitudes e valores. Este éum tema polêmico que merece alguma discussão neste prólogo.O behaviorismo nos legou uma representação de que todo o psíquico é aprendido, e que tem nasua base a ideia de que precisamente todo o psíquico se forma nas contingências vividas as quais sãopassíveis de controle e seguimento. Porém, em minha opinião, o termo aprender, num sentido humano e complexo, deve se aplicar só aos aspetos operacionais da vida psíquica. Aquelas produçõessubjetivas que nos constituem além de nossa consciência e de nossa possibilidade de controle, sãoautênticas produções que estão além da organização intencional e da produção consciente que todaaprendizagem de produções humanas complexas implica.Tanto os valores quanto as atitudes, termo este por demais discutível dada sua existência particular para sinalizar um tipo particular de motivação dentro da Psicologia positivista e individualistanorte-americana, são motivações humanas, portanto, estender o termo aprendizagem a esses processos implica aceitar que a motivação se apreende e não que ela se forma no percurso da atividade socialhumana. A ideia de que tudo é passível de ser aprendido é própria de uma Psicologia racionalista debase cognitivista; na própria tradição da Psicologia, seria impossível, por exemplo, afirmar que asolução do complexo do Édipo se apreende. Ela é consequência de um processo que está além docontrole e da consciência do sujeito.Se reconhecermos a existência de processos psíquicos que estão além da consciência e do controle do sujeito, não podemos generalizar que todos os processos são aprendidos. Os próprios conceitos de vivência e de sentido desenvolvidos por Vygotsky, no momento final de sua obra, não sãopassíveis de serem aprendidos; então, é um bom tema para o leitor refletir na leitura do livro eO processo de aprendizagem e seus transtornos - 17

posicionar-se em relação a esta questão que o autor, na força e sede de não deixar nada fora emrelação à aprendizagem, também nos traz em seu texto.No capítulo três, o autor nos apresenta um excelente quadro dos transtornos da aprendizagem,apresentados de forma completa e muito didática, outra das características gerais deste texto: seucaráter complexo, denso, abrangente, mas didático. Em particular, gostei do tópico intitulado Minhaproposta sobre alterações da aprendizagem, onde logo depois de nos apresentar alguns dos mais importantes posicionamentos em relação aos transtornos da aprendizagem, o autor desenvolve a sua posição,fundamentada em frutíferos anos de experiência profissional e de pesquisa no tema e sobre os quaisposso testemunhar. Assim, suas reflexões sobre os transtornos são ricas e originais, oferecendo novos caminhos para o trabalho com eles.Quanto ao capítulo quarto, Félix aborda um sistema de atividades no conceito de algoritmointerventivo que confirma o posicionamento dialético no trabalho com as crianças com estes tipos detranstornos para, finalmente, distinguir “o joio do trigo” nas tarefas psicopedagógicas.Na discussão sobre os transtornos da aprendizagem eu gostaria de um maior aprofundamento notema da construção social desses transtornos e da forma como que eles são afetados pelos discursossociais hegemônicos, que não se limitam à escola nem à sala de aula. A consideração da subjetividadesocial que está na base dos processos de institucionalização social desses transtornos me parece essencial para um trabalho mais profundo de prevenção e promoção de saúde em relação a eles.Finalizando minhas considerações, o livro que agora prefacio representa um sistema, através doqual o autor vai discutindo um conjunto de questões básicas, as formas que essas questões tomamem diferentes teorias e como ele as compreende. Um traço muito particular e gratificante do livro é oencontro com o autor, com suas colocações, reflexões e posições em todos os momentos desta obra.Estamos frente a uma obra que representa uma excelente condição como texto para o estudo daaprendizagem, tanto pela sua completude na abordagem do tema, como pela coerência em que sãointerrelacionados os temas tratados.Mas algo importante que o livro traz para aqueles que querem se decidir pelo caminho da práticae da pesquisa, em um campo tão complexo, são a audácia e o caráter ativo do autor frente aos problemas que nos apresenta. Não existe o ocultamento cômodo por detrás das teorias estabelecidas; pelocontrário, destaca-se a reflexão crítica e oportuna a partir de suas próprias ideias e com o riscoconsequente, condições essenciais a todo bom livro.Fernando González Rey18 - Félix Díaz

INTRODUÇÃOQuando analisamos o percurso do século XX, podemos constatar que o passado milênio legou aeste, recém começado, uma “revolução” quanto a concepções humanistas, bem como a recursos adequados à sua visão, embora com este avanço também tenhamos herdado a explosão de novos termosque muitas vezes descansam em velhos conceitos, muito deles “tradicionais”, porém fartamente comprovados na prática e vigentes na atualidade.Esta terminologia “moderna” muitas vezes provoca alguma confusão na hora de analisar teóricaou praticamente as bases e a metodologia de algum desenho ou projeto, por exemplo, numa investigação e/ou na atenção terapêutica, como é o caso do contexto psicopedagógico relacionado com aaprendizagem escolar.Relacionado a este “problema comunicativo” atual, há diferentes orientações que emanam dasdiferentes correntes que pretendem explicar o homem e seu processo de aprendizagem, nucleadasem três teorias históricas do conhecimento humano: a inatista (ou naturista ou biologista), onde deforma simplista se considera que ao nascer a pessoa já traz com ela o “andaime” para aprender,subvalorizando a influência social; a ambientalista, basicamente representada pelo comportamentalismo que reduz a aprendizagem à determinação absoluta do meio; e a interacionista, fortemente ligada ao construtivismo de corte piagetiano e/ou de corte vygotskyano, onde se integradialeticamente o que efetivamente é inato na aprendizagem e o substancial aporte do social no processo de aprender, concepção que constitui, hoje em dia, o paradigma psicológico-pedagógico maisconsequente, do ponto de vista científico-humanista.Com a intenção de comparar estas três formas principais de “ver” o desenvolvimento em geral ea aprendizagem em particular, apresento quadros-resumo sobre as três concepções básicas:Sobre o Inatismo:Assegura que as capacidades básicas do ser humano são inatas.Enfatiza fatores maturacionais e hereditários como definidores da constituição do ser humano e doprocesso de conhecimento (biologismo).Considera que o desenvolvimento (biológico, maturativo) é pré-requisito para a aprendizagem.Portanto, a educação em nada contribui para esse desenvolvimento, já que tudo está determinadobiologicamente segundo a programação genética.Confia nas práticas educacionais espontaneistas, pouco desafiadoras: primeiro esperar para depois fazer.O processo de aprendizagem e seus transtornos - 19

Assevera que o desempenho das crianças na escola não é responsabilidade do sistema educacional: ascapacidades básicas para aprender não se criam, ou seja, se nasce com elas e elas é que permitem aprender.Quadro 1 – Concepção inatistaFonte: Elaboração do autorSobre o Ambientalismo:Atribui ao ambiente à constituição das características humanas.Privilegia a experiência como fonte de conhecimento e de formação de hábitos de comportamento(empirismo).Diz que as características individuais são determinadas por fatores externos ao indivíduo e não necessariamente pelas condições biológicas.Suas práticas pedagógicas estão baseadas no assistencialismo, conservadorismo, direcionismo,tecnicismo: o ensino bom, aprendizagem boa.A escola é supervalorizada já que o aluno é um receptáculo vazio, uma

Ainda, dentre estes “desvios primários”, diferenciaremos os que na verdade devem ser conside-rados como transtornos da aprendizagem e requerem uma atenção especial, própria de uma necessi-dade educativa especial. Esta diferenciação se baseia numa pesquisa (DÍAZ RODRÍGUEZ, 1998) onde se propõe três

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